MNTQN #25 - 40 graus e um tapa na cara: receita para o caos
Ou "o dia em que perdi a linha com a Lena"
Verão, quase 40 graus, asfalto queimando a canela. Chegamos em casa suando, Lena depois de uma manhã inteira brincando com água na escolinha e eu sem almoçar, voltando do médico depois de uma manhã zero produtiva.
Nos deitamos juntas para a soneca da tarde regada a ar condicionado. Ela se recusa a dormir (leva acordada desde às 05:40 da manhã) e quer reler o livro de buscar animais na granja. Eu digo que uma vez mais e depois dormimos. Ela disse não e me bate na cara. Respiro e digo em voz baixa, segurando o bracinho dela: "não aceito que você me bata. Use as suas palavras pra dizer o que te incomoda".
Repito que é hora de descansar e ela explode em choro e gritos. Sacode braços e pernas como se o corpo estivesse pegando fogo. Me sento na cama e digo que não vamos brincar agora. Outro "não" e outro tapa na cara.
Perdi tudo. Soltei um grito que veio de um lugar que não é meu: é mais antigo, mais selvagem, mais cru. Vendo na cara dela os olhinhos arregalados de assombro, me dei conta que um comportamento primitivo tinha me engolido. Levantei e saí do quarto, enquanto ela seguia chorando. Inspira, expira, inspira e expira. Uma criança de dois anos não sabe se autorregular.
Só que naquele microssegundo de tapa na cara, todas as informações que aprendi sobre o cérebro infantil viraram fumaça e eu era inteira sangue fervendo: "é nesse momento que uma "mãe de antigamente" perdia a paciência e soltava um tabefe", pensei.
Teoria e realidade estavam ali desenhadas na minha cara. Mas não somos mães de antes e sabemos que uma criança de dois anos não entende sobre limites, não sabe se acalmar porque você diz "fica calma" (a gente com 40 anos não sabe) e usa o corpo para se expressar o que o vocabulário ainda não sabe dizer.
Saí do quarto com o grito ainda ecoando entre nós. No corredor, olhei no espelho e vi uma mulher que não reconhecia, com cabelo grudado de suor, olhos vidrados, respiração acelerada. Quantos minutos ficamos assim? Ela chorando lá dentro, eu me recompondo aqui fora, até que consegui voltar. Dei colo e, quando o fogo baixou, pedi desculpas: “pessoas às vezes são como tempestades, filha, e desabam. Mas isso não é legal. Prometo tentar me controlar para que não aconteça de novo.”
Sair de cena foi a única opção para retomar o autocontrole e reconhecer que não sou uma mulher pré-histórica fugindo de um predador. Sou uma mãe superestimulada, sobrecarregada, sem almoçar e com uma filha em ebulição. Descobri que o cansaço me empurra para o lado mais primitivo: acordar às 5h40, manhã sem almoçar, calor de 40 graus, dia improdutivo. Cada elemento foi uma nuvem carregada se acumulando. É mais difícil ser mãe consciente com o tanque vazio.
E enquanto escrevo essa newsletter, uso a escrita para investigar minha própria tempestade e descobrir os sinais de que ela manda antes de desabar. Em vez de me punir, prefiro me escutar e tentar encontrar maneiras de evitar inundações. A punição é uma tortura sem muito poder de mudança. A escuta é uma lanterna iluminando cantos escondidos.
Te convido a fazer esse mesmo exercício:
Escolha um lugar tranquilo e mapeie sua tempestade interna.
Liste suas condições de vulnerabilidade (horários, situações, estados físicos).
Identifique a sequência que antecede seus temporais e reconheça o que deixa suas nuvens cinzas e carregadas.
Escreva como detetive da própria experiência, sem julgamento, sem filtro e vem aqui me contar como foi.
Lembre-se que antes de ser mãe, você é gente.
Com carinho (e chuvas isoladas),
Amanda
Gostei demais do exercício proposto, Amanda. Vou usá-lo mais vezes!
Me reconheci tanto na situação descrita, no sentimento de descontrole, de culpa e de me sentir também irreconhecível.
Por aqui, o que mais antecede esses momentos são o cansaço ou a vontade de estar em outro lugar, fazendo outra coisa e bem longe das crianças.
Não é fácil lidar com esse mix de sentimentos e é como você escreveu, muitas vezes, nem nós adultos conseguimos nos autorregular ou usar as palavras para expressar o que queremos. Como é que eles, com tão pouco tempo de vida, vão conseguir?